AS CICATRIZES QUE FICAM, AS DORES QUE PASSAM
A partir de certa idade (já alcançada faz tempos) as cicatrizes ficam. Do menor arranhão, no menor esbarrão, as cicatrizes aparecem. A pele já não tem mais a plasticidade de uma argila na qual todo surco desaparece enquanto úmeda. Aquela, que se regenera do nada, tapando os vestígios de vida.
Ao contrário: as dores passam. Talvez porque acordar todas as manhãs sem alguma dor seja uma expectativa longínqua. Portanto, levantamos a cabeça, nos espreguiçamos, alongamos os músculos, alinhamos a coluna, na vã ilusão de que as dores passarão. E passam.
Assim, entendemos que no mundo, só a dor final, a dor da alma, aquela que não sentimos no nosso corpo, tem a potencialidade das cicatrizes. Mas são invisíveis aos olhos dos outros, mesmo que visíveis aos próprios olhos.
Cicatrizes que já não se fecham com facilidade e ficam ali, por bom tempo, para que nós lembremos de quê matéria somos feitos. Argila original que se resseca aos poucos, até a secura total. Para voltar a ser rígido, depois de que o mundo haja tentado flexibilizarnos até os poros. Da rigidez ao pó. Do pó à água para voltar a ser argila, talvez outra, de outro lugar, sem memórias do hoje, de quem se é, de quem se foi.
Vem que serei pó. Sempre a estrutura arisca e imprevisível do pó.